REFLEXÃO DO 4º DOMINGO DA QUARESMA

No Evangelho do 4º domingo da Quaresma lê-se a narrativa de João, quanto à cura de um cego de nascença.

No Evangelho do 4º domingo da Quaresma lê-se a narrativa de João, quanto à cura de um cego de nascença.

No tempo de Jesus, os cegos, os doentes crónicos, os portadores de deficiência, eram associados ao pecado dos próprios, dos pais ou de uma geração anterior. Como tal, eram excluídos, postos à margem, impedidos de estudar, de participar na vida comunitária, de trabalhar, de testemunhar em tribunal, de participar nas cerimónias religiosas. Eram impuros, indignos, dependentes, sem poderem desenvolver qualquer trabalho. Eram pecado.

Este cego tem família, tem vizinhos, é conhecido na comunidade, mas o relato não refere o nome: pode ser cada um de nós que lê ou escuta esta mensagem, até porque a cegueira na Bíblia vai muito para além da ausência de visão física.

1. Jesus cumpre a sua missão (cf. Lc 4, 18-21; Is 61, 1-2).
“O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres. Ele me enviou a proclamar a redenção aos cativos e a vista aos cegos, a restituir a liberdade aos oprimidos e a proclamar o tempo da graça do Senhor”.
E Jesus disse-lhes “cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir”.
Jesus afirma a sua missão de “ser luz”, de “dar vista aos cegos”, de “libertar os oprimidos”, de propor a Luz divina para a vida do ser humano, de redimir os que vivem no cativeiro de processos que desfiguram, que desumanizam, que maltratam a dignidade e a liberdade: «É preciso trabalhar, enquanto é dia, nas obras d’Aquele que Me enviou. Vai chegar a noite, em que ninguém pode trabalhar. Enquanto Eu estou no mundo, sou a luz do mundo».

2. Jesus aclara a perspetiva dos discípulos… Cura a cegueira dos preconceitos.
Os discípulos são pessoas do seu tempo, da cultura em que vivem, dos conceitos e preconceitos de uma época. Por isso perguntam a Jesus: «Mestre, quem é que pecou para ele nascer cego? Ele ou os seus pais?».
Jesus desmistifica e desmonta esta associação. O sofrimento é inerente à nossa natureza humana, ao facto de vivermos sujeitos ao tempo e ao espaço, pelo que não há relação entre pecado e sofrimento: «Isso não tem nada que ver com os pecados dele ou dos pais; mas aconteceu assim para se manifestarem nele as obras de Deus».
É um convite direto à revisão associações que fazemos no nosso interior e que podem levar a ostracizar, a pré-avaliar negativamente, a condenar, a rejeitar, a julgar antes de observar os gestos, os sentimentos, as palavras… as intenções e os propósitos do outro. Um convite à revisão das nossas representações mentais enquanto pessoas e enquanto comunidades.

3. Jesus cura o cego de nascença.

3.1. Jesus encontra no seu caminho um cego de nascença. Os encontros autênticos com Jesus produzem sempre transformação: do interior (acolhimento, ressonância, aliança) para o exterior (atitudes, padrão comportamental, compromisso, testemunho).

3.2. «Fez com a saliva um pouco de lodo e ungiu os olhos do cego». Jesus repete o ato criador de Deus (ver Génesis). Jesus pretende (re)criar cada um de nós, animados pelo Espírito Santo, competentes para olhar com os olhos amorosos de Deus. Jesus quer que cada um de nós aborde as circunstâncias e conjunturas dos tempos e da vida com a perspetiva do amor, com foco na solidariedade, com solidariedade, com compromisso.

3.3. A cura não é imediata, não é mágica: é milagrosa. Todo o milagre é processual, implica adesão e consciencialização. Jesus requer a cooperação do cego, a disponibilidade para seguir as suas indicações. O mesmo acontece connosco. Jesus para operar maravilhas na nossa vida requer o nosso envolvimento, o nosso empenho, o nosso profissionalismo, a nossa seriedade, o nosso servir generoso, a convocação do nosso sentir e da nossa vontade.

3.4. «Vai lavar-te à piscina de Siloé»; Siloé quer dizer «Enviado». Jesus é o enviado de Deus para nos salvar, para nos mostrar o verdadeiro rosto de Deus. O cego também é enviado a testemunhar Jesus Cristo, a “luz do mundo”. O ser humano que quiser ser curado das cegueiras, das dependências, das adições, dos preconceitos, dos vícios, dos pecados tem de dar espaço para acolher o enviado de Deus, Jesus Cristo, e para tomar consciência de que não existe para si próprio nem, tão pouco, para os próprios interesses, mas para ser enviado para a missão de servir os que lhe são confiados, para ser enviado para cumprir a sua missão. O cristão tem noção de que é amado por Jesus para amar o próximo que cruza a sua existência. É precisamente na interação com a concretude da vida que devemos tornar o nosso olhar e o nosso agir mais divino/amoroso, mais luminoso, mais misericordioso.

3.5. «Lavou-se e ficou a ver». Uma visão que o fez redescobrir-se, ganhar dignidade, tornar-se livre, perceber a próprio sentido e missão. Uma visão que o fez conhecer melhor as tramas, as intenções e os propósitos dos que o rodeavam. Uma visão que perscruta. Uma visão que testemunha o amor. Uma visão que associa coração e mente.

4. Jesus observa as reações à cura do cego de nascença.

4.1. Os vizinhos e conhecidos
Interrogam-se, percebem a novidade da proposta de Jesus, mas não avançam para o passo seguinte: não se interessam, não vão ao encontro de Jesus para se tornarem mais válidos, mais luminosos, mais livres, mais autónomos, mais completos. Preferem o seu cantinho, o seu mundo limitado, as suas seguranças, o seu status.

4.2. Os fariseus
Percebem que Jesus oferece a luz, é Luz, e curou o cego de nascença… mas recusam-se a aderir… recusam liminarmente a luz: estão cómodos nos seus esquemas. Dão-se conta da novidade de Jesus, mas não a querem conhecer nem reconhecer… não querem descer dos seus pedestais, da sua autossuficiência… Não querem acolher. Opõem-se à luz e não aceitam que alguém queira sair da escravidão das trevas para a liberdade sem a sua autorização. Porque era cego, portador de deficiência, não podia estar na sinagoga (não só tinha pecado, como era pecado…); agora que vê, porque aderiu a Jesus Cristo, é expulso da sinagoga.

4.3. Pais e família.
Constatam e confirmam que o filho nasceu cego e agora vê. A pressão social do grupo dominante faz com que evitem comprometer-se: não querem ser expulsos da sinagoga. Por receio preferem ficar na sombra: nem na Luz nem nas trevas. Isto por vezes também acontece com alguns cristãos.

4.4. O cego de nascença curado
Antes é excluído, indigno, pecado, prisioneiro das trevas, dependente, culpado, limitado.
O encontro com Jesus recria-o… sente uma vida nova… é muito mais do que o ver físico: é sentir, é compreender, é abordar de outra forma; passou a ser uma vida com propósito… com meta luminosa…
O texto descreve com detalhe o processo de maturação, de interiorização e de adesão a Jesus, Aquele que é Luz e cura: começa por uma vago “não sei” para, de seguida, afirmar “é um profeta” e, depois, passar à certeza, à convicção e ao testemunho: argumenta com clareza, com sabedoria, com agilidade, com inteligência, com frontalidade, também com ironia… é perentório na recusa em voltar à escuridão/escravidão e dependência. Torna-se adulto, assumido, maduro, livre, vencedor de medos. Adere plenamente à Luz, a Jesus: “creio, Senhor”, prostrou-se a adorou, reconhecendo o verdadeiro rosto de Deus em Jesus.

Somos criados para ser livres.

Em Jesus Cristo somos amados por Deus. Este Amor, que nos cura e ilumina, torna-se força e determinação para vencer todas as cegueiras, todas as dependências, todas as adições, todas as pressões, todos as virulências… Estes obstáculos não vêm apenas do exterior: também temos de estar atentos ao egoísmo, ao orgulho, à arrogância, à autossuficiência, aos vazios interiores, à sede de domínio, à ganância.
De Jesus recebemos a Luz para ver muito além da aparência, da forma, da imagem, do número de seguidores, dos produtos cosméticos… A Luz de Cristo, que nos cura as cegueiras (sendo que algumas poderão vir desde o nascimento devido a eventuais fatores genéticos), faz-nos ver com o coração, com o interior bem estruturado e refletido; faz-nos focar o âmago dos que nos são confiados; faz-nos vencer as tentações da superficialidade e das sombras; faz-nos trabalhar uma consciência sensível e refletida que mantém presente o propósito de vida, o sentido do existir; faz-nos construir a vida com substância e caráter.