A memória litúrgica de São Nuno de Santa Maria, Nun’Álvarez Pereira antes de entrar na Ordem do Carmo, celebra-se a 6 de Novembro.
No dia seguinte, Sábado, a Associação dos Auditores da Defesa Nacional promoveu, na Igreja de São João Batista da Foz, no Porto, a celebração da Eucaristia, no contexto de uma homenagem que constou de uma série de conferências sobre a sua vida e obra. Presidiu à Missa o Bispo das Forças Armadas e das Forças de Segurança, D. Manuel Linda, que proferiu a seguinte homilia.
SÃO NUNO DE SANTA MARIA
“O seu nome vive através das gerações”
Esta celebração confirma o que assegura a primeira leitura: “O seu nome vive através das gerações”. Perdura não tanto pelos seus “feitos gloriosos” referidos na mesma passagem bíblica, se entendidos simplesmente na linha das façanhas militares, mas, muito mais, pela intensidade do amor a Deus, complementado por um não menor amor aos irmãos. E isto é que torna actual e perene o exemplo de Nun’Álvarez Pereira. Queria meditar neste dado em dois pontos fundamentais: um sobre a santidade e outro a respeito do dever da fé de intervir no mundo.
- Militar e santo
A alguns, causará um certo constrangimento a associação entre vida militar e santidade. De tal forma que uma excluiria radicalmente a outra.
É verdade que há vias distintas para atingir a santidade. E que umas serão mais fáceis que outras. Mas a via militar não é impossível. Prova-o o facto de o Evangelho recolher como exemplar o conselho dado por João Baptista aos soldados que lhe perguntaram o que deviam fazer para seguir a via da justiça que conduz a Deus: “Não exerçais violência sobre ninguém, não denuncieis injustamente e contentai-vos com o vosso soldo” (Lc 3, 14). E não lhes pediu para deixarem a vida militar. Jesus, por seu lado, ressaltou a fé de um graduado romano a quem beneficiou com o dom da cura de um servo: “Não encontrei ninguém em Israel com tão grande fé” (Mt 8, 10). E foi outro centurião a fazer a primeira profissão de fé pascal: “Verdadeiramente, Este homem era Filho de Deus” (Mc 15, 39).
Também a Igreja, ao longo da história, apontou a vida de muitos militares como exemplar, ao canonizá-los. Para além dos conhecidos São Sebastião e São Martinho de Tours, pensemos, por exemplo, em São Luís, rei de França, e em Santa Joana d’Arc, esta, curiosamente, morta no mesmo ano em que faleceu D. Nuno e, como este, só canonizada cerca de meio milénio depois.
No caso concreto do Santo que agora celebramos, a conciliação do seu ofício, dito moralmente difícil, com a santidade deu-se na oração e na frequência dos sacramentos, é certo, mas também na completa rejeição da violência gratuita, na recusa de tudo o que a consciência rejeita e na persecução do bem comum. E no contexto da crise de 1380, o bem comum passava pela consolidação da independência nacional, condição prévia daquele desenvolvimento económico e cultural que, alguns anos mais tarde, nos haveria de projectar na aventura das descobertas, expressão do mais típico humanismo português e vivência sublime de uma dimensão constitutiva da nossa fé: a evangelização missionária.
- São Nuno e o projecto de sociedade
A segunda ideia que queria colocar à vossa consideração é a necessidade de um projecto humanista de sociedade, hoje uma terrível lacuna na civilização ocidental.
Sabemos que, garantida a soberania nacional, o santo Condestável renunciou ao relevantíssimo cargo de Comandante do Exército e se deixou escolher para representante do povo nas Cortes de Lisboa. Este é um dado histórico pouco conhecido ou pouco divulgado. Ele que era o homem mais rico do país não se acolheu à sombra da importância atribuída às classes dominantes, o clero e a nobreza, mas –homem de larga visão- ligou a sua vida ao povo. Anteviu, sabiamente, que, embora necessitado de condutores aptos a saber trazer à tona as suas imensas possibilidades, o verdadeiro protagonista da história é o povo. Por isso o defendeu nas batalhas, o representou nas Cortes e o alimentou como porteiro-esmoler do Convento do Carmo. E não faltam historiadores que garantam que a sua profissão religiosa nos Carmelitas foi apressada pelo facto de, nas referidas Cortes, ter intentado uma salvaguarda dos direitos da nação face ao crescente absolutismo real, que então já se pressentia, no género da «Magna Charta» inglesa –uma Constituição, diríamos nós hoje- sem que, da parte dos seus pares, encontrasse a menor adesão. Incompreendido, como os que têm razão antes do tempo, não conseguiu levar o projecto avante. Mas constituiu-se num dos raros políticos de larga visão humanista, ao advogar um projecto de sociedade humanamente livre, justa e regida pelo direito constituendo, não pela vontade discricionária do rei.
Aqui reside o timbre da diferença entre a forma humanista de fazer política e outros estilos que, muitas vezes, mais se assemelham ao regresso, ainda que inconsciente, à demagogia da velha Roma decadente pré-cristã, apenas preocupada com o pão e o circo. Devemos todos pensar nisso. É esta a razão do apelo de sensatez que os últimos Papas têm laçado à Europa: que redescubra e seja fiel às suas raízes cristãs. Não tanto ou somente por motivos religiosos, mas até mesmo por razões sociais humanistas: a da própria sobrevivência da civilização ocidental, baseada na pessoa humana e na sua dignidade inegociável. Precisamente a base onde assenta a democracia, que tanto apreciamos. Porque se esta base falhar, será toda a construção democrática que ruirá.
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A importância exemplar de São Nuno de Santa Maria insere-se aqui: não formulou teoricamente estas percepções, mas viveu-as e incutiu-as numa época bem mais difícil que a nossa. Por isso, oxalá a Igreja, em geral, e Portugal, em concreto, recorram mais a ele, quer como intercessor junto de Deus, quer como exemplo do cristão chamado a santificar-se também pela sua actividade profissional e a constituir-se, pela sua condição de baptizado, em “sal da terra e luz do mundo”.
+ MANUEL LINDA