Devido ao luto nacional pelas vítimas dos incêndios, o Exército cancelou todas as celebrações agendadas, no contexto do seu «Dia», com excepção da Missa.A missa de sufrágio pelos já caídos e de acção de graças pelo cumprimento das missões atribuídas ao Exército foi celebrada na igreja de São Francisco, em Guimarães. Presidiu D. Manuel Linda que pronunciou a seguinte homilia.
Dia do Exército – Guimarães
29º Domingo Comum – A
Um Exército de salvaguarda da pessoa e sua dignidade
Mesmo que não sejam os textos bíblicos mais conhecidos ou fáceis de fixar, são curiosas estas leituras que escutamos. Farei uma pequena síntese que enquadre o sentido daquilo que aqui celebramos: o Dia do Exército.
A primeira leitura refere um facto acontecido no ano 539 a.C.: Ciro, rei da Pérsia, com uma muito bem sucedida campanha militar, fez cair o império babilónico, aquele que tinha escravizado o povo judeu, e permitiu a este o regresso a Israel, a reconstrução do templo de Jerusalém e o restauro do culto ao Deus vivo. Permitiu, pois, que os hebreus voltassem a ser um povo e gozassem de uma identidade e uma pátria. Para a mente do profeta que nos conta isto, Deus usa Ciro, um pagão e estrangeiro, como instrumento da sua misericórdia, pois só Deus é Senhor da história. E esta, mesmo que o não saiba, encaminha-se sempre para a edificação daquela plenitude e âmbito de valores a que chamamos «Reino de Deus».
Por outro lado, o Evangelho apresenta-nos uma passagem determinante para a compreensão da relação da fé com o mundo. A pergunta sobre se era ou não legítimo pagar o tributo de vencidos a um César usurpador da independência e identidade a que Israel aspirava, é tudo menos ingénua. De facto, a sociedade do tempo dividia-se entre os que poderíamos chamar os «objectores de consciência fiscal» e os colaboracionistas, fosse por convicção, fosse por não descobrirem alternativas viáveis.
Jesus, porém, coloca a questão num nível superior. O César de Roma era adorado como um deus, o «divalis» ou divino. E como era de carne e osso, bem visível e com poder de vida e de morte, na prática, para os romanos, era o único deus efectivo. Júpiter, Mercúrio, Marte, etc. eram apenas ficções. A imagem e a inscrição que figuravam nas moedas do tributo funcionavam como instrumento de adoração a esta divindade. Obviamente, esta mistificação colidia frontalmente com a percepção humanista de Jesus: os chefes ou governantes não são deuses, mas simplesmente aqueles a quem o povo delega o poder que recebe de Deus para a edificação do bem comum, numa atenção privilegiada aos mais débeis.
Encontramos nesta passagem, portanto, o suporte do nosso entendimento da relação entre a fé e o poder, que se poderia sintetizar no seguinte: autonomia das realidades terrestres no que à forma de organização social diz respeito; independência total entre sociedade civil e sociedade religiosa; entretanto, é no serviço concreto à pessoa concreta que essas sociedades se encontram e se relacionam; daqui o princípio da colaboração que deve reger a relação entre as duas; o cristão, definido como a «alma do mundo», tem a obrigação de usar os instrumentos sociais à sua mão –voto, comunicação social, sindicatos, associações de todo o género…- para desmascarar a contínua tentação da divinização do poder e o «obrigar» a servir efectivamente aqueles que não conseguem caminhar ao ritmo da sociedade, cada vez mais competitiva.
E no meio disto tudo, que dizer sobre o Exército? Não sendo um instrumento religioso, embora nele haja muitíssimos crentes, também é mais qualquer coisa que um simples produto social. Pelo menos, nunca poderá ser um instrumento do poder ou da conservação do poder pelos corruptos e pelos ditadores. E quando olhamos para a realidade de alguns países, lá para as Américas ou para o Extremo Oriente, interrogamo-nos se todos os Exércitos do mundo têm as mãos limpas.
Tem-nas o nosso, graças a Deus, e te-las-à sempre mais porque sabe que nem existe para se servir a si mesmo nem para servir poderes: a sua função é servir a vida e o bem das pessoas, assegurando-lhes condições de defesa, de liberdade, de paz e até colaborando nas situações de extrema gravidade e perigo como, por exemplo, nas buscas, salvamentos, situações de catástrofes, incêndios, etc. Dentro e fora do país. É preciso que todos saibam que há militares portugueses em várias partes do mundo, em tarefas de alto risco, que têm prestigiado o nome de Portugal e têm salvo inúmeras vidas humanas e assegurado condições de dignidade e de segurança a milhões de pessoas. Penso, por exemplo, na República Centro Africana.
Estas tarefas da actuação do bem que o nosso Exército faz –e faz com tanto empenho!- são designadas por «missões de paz» ou simplesmente «missões». Curiosamente, a Igreja que está em Portugal celebra hoje o Dia Mundial das Missões. É uma jornada, todos os anos repetida, para tomarmos consciência de que quem tem fé sente necessidade de a transmitir e, assim, fazer com que muitos reconheçam que o único Salvador se chama Jesus Cristo e adiram ao seu estilo de vida.
Antigamente, nesta «missão», talvez tenhamos usado um método impositivo. Hoje, é o contrário: favorecer a promoção integral da pessoa humana, ir de encontro às suas carências e necessidade e promover os seus direitos. É uma tarefa, portanto, globalmente integradora e não dualista: não prega, apenas, uma doutrina, mas serve a pessoa em situação. E, quase sempre, começa mesmo por esta dimensão fundamental do pão, do alojamento, da saúde, da educação e cultura, da promoção da mulher, etc. Tudo isto feito no clima da mais absoluta gratuidade e com a colaboração económica e de oração dos outros membros da comunidade eclesial.
Caros militares do Exército, evidentemente, não vou colocar as missões católicas como o exemplo do que deve ser a vossa actuação nas missões de paz e no vosso serviço à sociedade em geral. Se interligo os dois âmbitos é apenas para acentuar este ponto em que nos podemos e devemos encontrar: vós e nós, Igreja, só temos razão de existir para o serviço. Não o serviço do poder –insisto-, mas assegurando o bem comum, particularmente dos mais débeis e dos simples. Fundamentalmente, pela via da prevenção e da dissuasão perante as forças do mal, aquelas que, em nome da ideologia professada, sacrificam ferozmente milhares ou milhões de inocentes. Para além, evidentemente, do contributo dado à sociedade civil em tempo de paz. Nesta linha, quero dar os parabéns ao Exército pelo seu brilhante contributo por alturas desta calamidade e hecatombe nacional que têm sido os incêndios: mesmo que a comunicação social o não tenha referido muito, sei que fizeram um esforço notável, tanto mais de realçar numa altura em que os vossos quadros escasseiam.
Celebramos este Dia do Exército em Guimarães, aqui onde “nasceu Portugal”. Nasceu fruto de uma vontade do povo, acarinhada e promovida pela Igreja, e que encontrou nas armas a forma de defender essa determinação colectiva de liberdade. Povo, Igreja e Exército constituem, portanto, um tripé onde assenta o ideal da Pátria, onde repousa a ideia de portugalidade. Que ela se mantenha tendo como sublime objectivo o bem comum nacional e mesmo mundial.
Isto peço a Deus por intermédio de um santo dos nossos dias, santo da simpatia e do serviço efectivo ao bem comum universal: o Papa São João Paulo II, cuja memória litúrgica hoje mesmo se celebra.
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Manuel Linda