O que fazemos com o nosso tempo é aquilo que nos define
Recentemente, estive três semanas a viver na cidade de Maputo que, até à Independência de Moçambique, era chamada por Lourenço Marques.
Após uma despedida carregada de emoção, para a qual contribuiu o enorme suporte de amigos e familiares, voei dezassete horas até à cidade da marrabenta e da makwayela (danças tradicionais bastante populares). 52% da população moçambicana é constituída por crianças com idades inferiores a 18 anos. Destas, cerca de 45% sofre de mal nutrição e desnutrição crónica, provocando limitações nas suas condições físicas e intelectuais. Como as crianças são o futuro do país, o desenvolvimento do mesmo tambémvai ficando comprometido, quer em termos sociais quer em termos económicos.
Maputo, capital e a maior cidade moçambicana, é o principal centro financeiro e empresarial do país. Contudo, é constituída por muitos bairros pobres que, todos os dias, recebem ajuda de instituições sociais e Organizações Não Governamentais. Foi, precisamente, com o objetivo de colaborar na prestação dessa ajuda, sair da zona de conforto do voluntariado nacional, e ter contato com outras realidades que tantas vezes se apresentam ocultas, que desejei partir e fazer esta viagem.
Em Maputo, tive a oportunidade de trabalhar nos vários projetos da Plataforma MAKOBO, uma instituição que tenta promover o bem-estar de pessoas e grupos socialmente vulneráveis. Acompanhei de perto o projeto “Lancheira Solidária | Merenda Escolar”, realizado no Bairro dos Pescadores cujo objetivo era dar apoio alimentar às crianças, entre os 3 e os 17 anos, inscritas no programa “Escolinha Solidária”, um programa de Atividades de Tempos Livres que, desde 2013, concede apoio escolar. De segunda a sexta-feira, era-lhes fornecido, ao almoço, sopa, fruta, pão, bolo, iogurtes e sumo. O Bairro dos Pescadores é um dos mais pobres da cidade, apresentando elevadas taxas de desemprego, alcoolismo, analfabetismo, abandono escolar a par de outras problemáticas sociais. Dentre deste contexto, as crianças tornam-se particularmente vulneráveis. Rapidamente deixam de brincar na rua ao xindiro para passarem a ajudar nas tarefas domésticas, sobretudo, as raparigas que, desde muito cedo, aprendem a carregar os irmãos às costas com ajuda das coloridas capulanas.
Integrei, também, o Projeto “Sopa Solidária” que, como o nome indica, distribui sopa (acrescida de pão e fruta) à população mais necessitada de Maputo e Matola (tendo como prioridade mulheres e crianças), aos idosos do Lar de Lhanguene e às crianças internadas no Hospital Central de Maputo. Desta ação resulta mais de duzentas refeições diárias distribuídas. Este projeto, que se encontra no ativo há mais de três anos, tem vindo a tornar-se muito reconhecido entre a população.
Moçambique é, atualmente, segundo a Organização das Nações Unidas, um dos sete países mais pobres do mundo. Mais de 10 milhões de moçambicanos encontram-se em situação de pobreza absoluta, pelo que, o objetivo da “Sopa Solidária” é tentar, de alguma forma, minimizar esta realidade, retirando pessoas da rua, principalmente crianças e jovens, incentivando-os a regressar aos seus contextos familiares e escolares.
Além do trabalho sócio-educacional, existem muitas outras áreas em que é necessário investimento para melhorar as condições de vida da população. A rede de transportes é, por exemplo, uma delas atendendo a que a mobilidade urbana é feita maioritariamente em semicoletivos particulares (conhecidos como Chapa 100) e por camiões curiosamente denominados My Love pelo facto de as pessoas viajarem sempre coladas umas às outras. O Sistema de Emergência Médica simplesmente não funciona e as instalações e equipamentos dos hospitais públicos apresentam uma grande degradação. A reciclagem de resíduos domésticos ainda está muito no início e a insegurança nas ruas é constante em algumas zonas.
Ainda assim, a cidade de Maputo apresenta locais de interesse que valem a pena ser visitados. A Estação Central dos Caminhos de Ferro, construída entre 1904 e 1910, é um edifício magnânimo, que, por diversas vezes, foi considerado um dos mais belos do mundo. A Fortaleza de Maputo, de planta quadrangular, construída com pedra avermelhada, conta com um portão maravilhoso de acesso para o pátio central. No Mercado do Peixe pode-se comprar peixe e marisco e comê-los nos restaurantes vizinhos. Na Feira de Artesanato, Flores e Gastronomia, conhecida localmente como FEIMA, há uma diversidade de artesãos. Na Ponta do Ouro existe uma praia maravilhosa que faz fronteira com a África do Sul. A viagem, até lá, é longa, mas vale a pena e, com sorte, é possível ver alguns animais selvagens como girafas, zebras ou elefantes. Moçambique tem um clima tropical onde as temperaturas mínimas, no Inverno, chegam aos 15°C e é dotado de ricos e extensos recursos naturais.
O povo moçambicano é religioso e possui uma cultura muito alargada onde usos, costumes e as histórias são passadas de geração em geração, os que os torna com características muito próprias, com um sentimento de família muito forte e um espírito de sacrifício enorme. A meu ver, e apesar das dificuldades diárias, é um povo muito feliz.
O tempo que vivi em Moçambique passou a correr. Mas os sorrisos e afetos trocados com as pessoas que conheci e contatei tocaram-me de tal forma que marcaram esta viagem para o resto da minha vida. Consegui tornar este sonho uma realidade. Ser-se voluntário num meio que não é o nosso é difícil. Inicialmente a desconfiança reina mas,aos poucos, vamos sendo aceites dentro dos grupos de trabalho e pela população em geral.
Como Sargento do Exército Português e membro activo da Cruz Vermelha Portuguesa há mais de 14 anos, vi-me impelida a passar este testemunho de forma a motivar outros a viver e partilhar experiências semelhantes.
Um enorme agradecimento à Plataforma MAKOBO por me ter endereçado o convite para participar nas suas rotinas diárias, e também a todos aqueles que me abriram os braços e me acolheram em Maputo. A todos eles um até já, ou como dizem na língua changana, yita-vonana.
“A viagem não começa quando se percorre distâncias, mas quando se atravessam as nossas fronteiras interiores.” (Mia Couto)
1Sarg Mat Ana Mafalda Almeida
Batalhão de Apoio de Serviços / Brigada Mecanizada