Na Missa dos Jerónimos, com a qual se assinalaram os 700 anos da Marinha Portuguesa, D. Manuel Linda pronunciou a seguinte homilia.

Homilia nos 700 anos da Marinha:

A glória que se conquista e não a celebridade que caduca

Celebremos os louvores dos homens ilustres. […] O Senhor realizou neles a sua glória” (Sir 44, 1-2)

Este texto bíblico parece escrito de propósito para este evento dos 700 anos da Marinha: glorificar quantos a constituíram e a tornaram mundialmente famosa. Não obstante, o escritor sagrado não aceita encomendas laudatórias. Na sua mente está uma noção geral de “homens ilustres”. Quem são eles?

Pelo contexto deste livro bíblico chamado de Ben-Sirá, estes “homens ilustres” são pessoas boas e sensatas que usaram a sabedoria e a coragem para seguir a lei de Deus e contribuir para o bem comum, a união e a coesão do povo. São, portanto, grandes figuras que conciliaram perfeitamente a religião com a vida e serviram a Deus servindo os outros e serviram os outros servindo a Deus. Para eles, a religião não era alienação e as legítimas preocupações da existência não os levaram a esquecerem-se de Deus.

O escritor sagrado louva-os encomiasticamente porque, numa época cuja moda cultural era apresentar referências exteriores ao povo judeu, estes “homens ilustres” podiam ser tidos como autênticos modelos de coerência de vida. Modelos a admirar e a imitar.

Lido em chave da história da Marinha Portuguesa, como este texto parece aplicado a um Gama ou Cabral, a tantos e tantos outros para quem a Cruz de Cristo era mais que um simples adorno das velas! Como, pelo serviço da nação e pelo serviço de Deus eles souberam ser “homens ilustres”! Por isso, nos seus navios, havia sempre espaço para as mercadorias, mas não menos para os missionários. E se é poesia a conhecida frase de Camões que fala na dilatação da “fé e império”, também não deixa de possuir um evidente lastro de verdade.

 

A glória neles realizada.

 

Chama a atenção a solenidade da afirmativa do escritor sagrado: “O Senhor realizou neles a sua glória”. Mas, o que é a glória? E porque é que se realizou nestes “homens ilustres”?

Antes de mais, importa ver que a glória a que o autor bíblico se refere não tem nada a ver com as celebridades baratas, tão típicas da actualidade.

Em primeiro lugar, porque a glória não se procura directamente: é o resultado de uma actuação discreta, muitas vezes desconhecida do grande público. Por isso, quase sempre a glória só é reconhecida postumamente. Mas a celebridade não gosta do anonimato e tudo faz para se manter continuamente na ribalta.

Depois, a glória advém das boas e múltiplas acções feitas pelos outros e não do benefício próprio. Mas a celebridade em nada se preocupa com a colectividade e tudo faz em ordem à promoção pessoal.

A glória também é inseparável da honradez. Não pode existir, portanto, fora de elevados padrões de virtudes e valores. A celebridade, nem tanto. Pelo contrário, é frequente que as celebridades se distingam pelas excentricidades, pela falta de valores humanos e espirituais, por uma vida amassada em verdadeiras aberrações. Por isso, falamos em «pessoas tristemente célebres». Por exemplo, Estaline e Hitler são célebres. Mas não são gloriosos. A não ser para alguns pérfidos como eles…

Em quarto lugar, diria que a glória se conquista no sacrifício de uma vida colocada ao serviço de uma grande causa, de um distinto benefício que se espera alcançar para a colectividade. A celebridade, ao invés, adquire-se no fogo-fátuo da exterioridade, numa habilidade mais ou menos circense. Por isso, a celebridade é mais fácil. Muito mais fácil! Como tal, vêem-se por aí muitos mais aspirantes à celebridade que à verdadeira glória.

Finalmente, a glória reclama perenidade, continuidade. Não é produto de um mero acto isolado. Ora, a perenidade remete para a eternidade e esta para a transcendência. Como tal, inerente à verdadeira glória está sempre uma noção religiosa. É por isto que falamos, por exemplo, na “glória de Bernini”: o baldaquino, existente em São Pedro do Vaticano, onde se colocavam as imagens dos santos acabados de canonizar. Ao contrário desta noção, a celebridade não se preocupa muito com o Transcendente. E nem sequer com a perenidade: oscila mais que o índice da Bolsa. É só para o presente. Por vezes, presente bem efémero.

 

A glória pertence a Deus

 

Tudo isto que acabei de referir relativamente à glória aplica-se a Deus de forma acabada.

Primeiro, porque Deus é O que sabe estar com a humanidade. Não foge dela. Por isso a criou. Aquele que não tem nenhuma necessidade, como que se fez carente do convívio humano. Por isso, o grande teólogo Santo Ireneu de Lion sintetizou isto numa frase que se tornou célebre: “A glória de Deus é o homem vivo”.

Em segundo lugar, esta vontade de estar connosco leva a que, em Jesus, Deus se faça homem no meio dos homens. Aceita os limites da nossa natureza –fome, frio, dor, cansaço, sofrimento, morte- para que não ficasse apenas no «parecer» homem: torna-se, efectivamente, um Homem. Curiosamente, é aqui que exprime a sua glória, como assevera S. João: “O Verbo fez-se carne e habitou entre nós. E nós vimos a sua glória” (Jo 1, 14).

Precisamente porque “por nós homens e por nossa salvação desceu dos Céus e incarnou” para ser o nosso Salvador, como professamos no Credo, é que é digno de glória. A glória que lhe é devida advém desta obra de salvação que Ele realiza em benefício da humanidade. Por conseguinte, por alturas do seu nascimento os anjos ousam cantar: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por Ele amados” (Lc 2, 14).

Mas a manifestação máxima da glória de Deus é a cruz. Parece um contra-senso afirmar que o maltratado e espezinhado, o injuriado e cuspido, o autêntico “farrapo humano” encontra na cruz a sua glória. Mas por aqui passa a fé da Igreja. Por isso, é frequente representar o Crucificado pregado a uma cruz radiosa, a uma cruz donde saem resplendores de luz e de alegria. E por isso, também, a Igreja canta na Sexta feira Santa: “Toda a nossa glória está na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo”.

 

Conquistar, hoje, esta verdadeira glória

 

Caros homens e mulheres que constituís, actualmente, a Marinha Portuguesa, esforçai-vos por alcançar esta glória e rejeitai a falaz celebridade. Procurai-a. Vivei-a. Para isso, deixai que vos indique as vias de acesso a ela. São as atitudes que enumero de seguida.

Persistência discreta. É o nunca desanimar. Mas é também a alegria íntima do dever continuamente cumprido. Não esquecendo que o herói é discreto. É o caso das mães que todos os dias repetem os mesmos gestos de dedicação aos filhos, ao longo de anos e anos, e não vêm para a praça pública pedir reconhecimento dessa sua dádiva.

Existência em função dos outros. Prestai boa atenção à frase do Senhor Jesus que continua tão verdadeira hoje como no dia em que foi pronunciada: “Aquele que pensa guardar para si a sua vida, vai perdê-la; mas, quem perder a sua vida por minha causa, há-de encontrá-la em plenitude” (Mt 16, 25).

Um somatório de virtudes. Hoje, as virtudes são um produto não valorizado. Como tal, tido como não rentável. Mesmo as virtudes mais básicas, de timbre plenamente humano-social: honradez, fidelidade à palavra dada, paciência, generosidade, determinação, obediência, simpatia, humildade, misericórdia, prudência, justiça, fortaleza, temperança, etc. Mas nós pensamos de outra forma: só o virtuoso é grande.

Sacrifício. Não no sentido masoquista, da dor pela dor. Mas na aceitação dos trabalhos inerentes à vida, pois o que é grandioso supõe sempre investimento. Sem esse sacrifício nem o estudante atinge as metas da habilitação, nem o trabalhador se forma e capacita, nem o dirigente supera a figura ridícula do tiranete para chegar ao verdadeiro timbre do líder que congrega e entusiasma em torno de um projecto comum.

Referência religiosa. A tal perenidade e eternidade de que se falou só se dão na abertura a Deus e ao seu Reino. A religião em nada diminui a pessoa. Pelo contrário, projecta-a para o sentido da vida, para a nobreza do ideal, para o mundo dos valores, para a grande meta que nos distingue dos animais.

Caros marinheiros actuais, mais do que nas velas dos vossos navios e no brasão que vos identifica, que a cruz de Cristo se grave no vosso coração. E na glória de Cristo encontrareis a vossa glória e a glória da Marinha Portuguesa.

 

Manuel Linda